16.4.10

Relinchando de prazer ou de cólera


Quando me faltam as palavras (fato raro, perene e escandalosamente revelador), os livros me socorrem. Viva a literatura e um viva para os leitores ávidos por consumir sentimentos humanos embebidos na estética do belo:


"Só que ela não queria ir de mãos vazias. E assim como se lhe levasse uma flor, ela escreveu no papel algumas palavras que lhe dessem prazer: Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse casa dele, e é. Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem - pois nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas e nem sela - apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo uma doçura primeira de quem não tem medo: como às vezes na minha mão. Seu focinho é úmido e fresco. Eu beijo o seu focinho. Quando eu morrer, o cavalo preto ficará sem casa e vai sofrer muito. A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave. Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome. Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridade, ele vai. Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai. Aviso também que não se deve temer o seu relinchar: a gente se engana e pensa que é a gente mesma que está relinchando de prazer ou de cólera, a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isso pela primeira vez.

Ela sorriu. Ulisses ia gostar, ia pensar que o cavalo era ela própria. Era?"
- Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres de Clarice Lispector.

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